Arte sem arte: a nova obra de Marina Abramovic

por João Perassolo

Segue até dezembro na galeria Sean Kelly, em Nova York, o mais recente trabalho da artista sérvia Marina Abramovic, um dos nomes-chave na arte contemporânea. Generator chamou minha atenção por ser uma contradição em termos: uma "arte sem arte", uma instalação sem objetos, um site specific que deixa intacto o local de sua realização. Queria entender como a performer aparentemente se ausenta de sua criação e deixa tudo a cargo do público, responsável por incorporar o conceito proposto e fazer a mágica acontecer.

Generator, de Marina Abramovic
Abramovic é conhecida por performances como A artista está presente, encenada no Museu de Arte Moderna de Nova York em 2010 (um filme de mesmo nome sobre os bastidores da obra esteve em cartaz no Brasil em 2013). Por três meses, todos os dias, a artista e o público ficavam cara a cara, sentados em cadeiras, separados apenas por uma pequena mesa. Há um vídeo que circulou pela internet no qual ela e seu ex-companheiro (de vida e de obra) Ulay se emocionam até as lágrimas depois de poucos minutos com os olhares fixos um no outro.
Como provam Generator e A artista está presente, nos últimos anos a arte da performer vem prescindindo de objetos: seus trabalhos se realizam de maneira imaterial, na troca imprevisível e momentânea estabelecida entre o visitante e a artista. Isso é bem distante do radicalismo deRhythm 0 (1974), em que Abramovic colocou na mesa de uma galeria objetos aleatoriamente escolhidos (batom, bisturi, sapatos, azeite, revólver etc.) e disse aos espectadores que ela era um objeto e que eles poderiam fazer o que quisessem com seu corpo durante as seis horas seguintes, tendo à disposição os artefatos da mesa.
Na entrada de Generator, assinei um termo permitindo que fosse fotografado e filmado. Em seguida, deixei casaco, mochila e celular, além de "qualquer objeto de medição de tempo" - palavras da assistente da galeria - em um armário. Meus olhos foram então vendados completamente por um pano preto e meus ouvidos tapados por um fone de ouvido gigante, como aqueles que os pedreiros usam em construções e que isolam quase totalmente o barulho externo.
Cego e surdo, fui guiado pela mão por uma das assistentes para um local desconhecido. Ela me soltou e saiu. Perdido por lá, eu poderia fazer o que quisesse, pelo tempo que quisesse, levando em conta uma única regra: me mover lentamente. Eram 15h.
Foi muito estranho ficar privado de dois sentidos. Além da óbvia perda de referência, tive uma forte sensação da presença do outro, mesmo que eu não soubesse quem encontraria ali – e, se encontrasse, como seria o toque. Comecei a movimentar meus braços em busca de uma parede, um ser humano ou algo que me desse alguma noção de estabilidade. Sem enxergar e sem ouvir, estava literalmente tateando no vazio.
O autor, de calça bege e blusa cinza.
Tendo chegado do excesso de eficiência de Manhattan, onde, apesar do volume monstruoso de pessoas e do caos aparente, ninguém encosta no corpo do ninguém por mais lotado que o vagão do metrô esteja e por mais estreita que seja a plataforma de espera do trem, meu cérebro teve dificuldade em processar a proposta da artista. Naquele espaço eu poderia me locomover calmamente, não teria que dizer "sorry" por esbarrar em alguém na hora de seguir meu caminho, teria a noção de uma pessoa como um ente delicado e não como uma etapa a ser vencida até meu ponto de chegada. Para mim, Generator foi uma renovadora experiência de alteridade, e não de introspecção forçada, como havia lido no material para a imprensa.
Foi igualmente difícil não carregar nada nos bolsos. Instintivamente queria alcançar o iPhone para checar uma nova mensagem ou postar uma foto no Instagram. Ninguém teria roubado a minha carteira, teria? O dinheiro e os cartões do banco e do metrô estavam lá, como eu voltaria para casa?


Na instalação, Abramovic leva ao limite a ideia de que o visitante não é um mero espectador, mas um elemento crucial da obra, que só será "de arte" uma vez que o público tope participar da viagem. Este de calça bege e blusa cinza nas fotos sou eu, depois de meia hora, mais à vontade com a lentidão, sentindo-se indefeso, dependente da ajuda alheia. No espaço da galeria são permitidas até 68 pessoas ao mesmo tempo, a mesma idade de Marina.
Generator é uma espécie de continuação do trabalho apresentado na Serpentine Gallery, em Londres, entre junho e agosto deste ano. Intitulado 512 Hours, durante dez semanas ela e seus assistentes interagiam com os visitantes realizando atos simples como olhar para a parede e dar as mãos. "Em 1989, eu dei uma entrevista na qual disse que a arte do século XXI seria uma arte onde não há nada entre o artista e o visitante, seria uma troca de energia, e foi isso o que aconteceu aqui. Olhar para algo não é experimentá-lo; isto é. A nossa cultura é baseada na culpa, em ter que entregar; mas aqui damos às pessoas a permissão de fazer nada - de fecharem os olhos e estarem consigo mesmas. O que damos às pessoas são elas mesmas", disse a artista ao jornal The Guardianà época da abertura da instalação.
Estampada na parede da galeria Sean Kelly, a frase do professor de arte e pensador de vanguarda alemão Alexander Dorner (1893-1957) dá o tom da obra em Manhattan: "O novo tipo de arte será mais como uma estação de força, um produtor de novas energias". A artista diz que pretendeu executar o conceito de "vazio cheio", derivado de ensinamentos tibetanos sobre a unicidade: o público supostamente é colocado em contato consigo mesmo e com a energia palpável do ambiente.
Independentemente do papo paz-e-amor, segui vagando sem rumo pela hora seguinte. Girei meu corpo várias vezes na tentativa de olhar para todos os lados; parei e virei a cabeça em direção ao teto imaginário, atento ao som distante dos passos dos outros visitantes; senti vivamente a fricção das roupas com o meu corpo. Em determinado momento encontrei uma parede, meu suporte pelos próximos 20 passos. Tive medo de sujar a parede com minhas mãos, porque estava no cubo branco da galeria. No meio da sala tateei colunas retangulares e estofadas: me escorei e suspirei aliviado.
Às 16h, levantei a mão e fui buscado por uma assistente, que com passos de bebê me levou de volta à entrada, removeu a venda e os fones, perguntou se eu estava bem – porque parecia zonzo – e me ofereceu uma caneta e um papel para escrever sobre a experiência. Não vi em momento algum o interior da sala de onde acabara de sair. Só fui entender o espaço e descobrir meus companheiros de viagem quando acessei o Tumblr no qual são postadas as fotos do processo.
Esperando na área dos armários por uma amiga que tinha ido comigo (“João, certeza de que peguei na teta de alguém lá”), notei que várias pessoas saíam desorientadas e incrédulas. A maioria ficava cerca de 20 minutos e alguns dividiam suas impressões com as assistentes.
Na entrada, uma adolescente de uns 12 anos acompanhada do pai insistente desistiu de participar ao saber que precisaria ser vendada. Ela disse que detestava não enxergar, mesmo que a sua família estivesse junto. Nem todo mundo está disposto a perder o controle de seu mundo.


Fonte: Blog do IMS

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