O Brasil deve adotar um currículo nacional único para a
educação básica?
NÃO
A liberdade de organização conferida aos sistemas de ensino
por meio da legislação brasileira é conquista do final do século 20.
O artigo 210 da Constituição de 1988 determina como dever do
Estado fixar "conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a
assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais e
artísticos, nacionais e regionais".
Essa liberdade, em país tão diverso como o Brasil, está
vinculada à existência de diretrizes que orientem a definição de conteúdos em
conformidade à base nacional comum e diversificada do currículo, garantindo a
necessária integração nacional.
Como estabelece o artigo 26 da Lei das Diretrizes e Bases de
1996: "Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da
clientela".
As mudanças na legislação garantindo flexibilidade
curricular permitem a adequação do projeto pedagógico de cada escola ao seu
meio, objetivando a unidade na diversidade.
Essa foi uma conquista de setores sociais que historicamente
estiveram alijados do direito à educação pública neste país.
Nas últimas décadas emergiram políticas voltadas à promoção
da educação para os afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência,
população do campo e em condições de pobreza. Compreendeu-se que não bastava
garantir acesso à escola se a educação não correspondia a seu universo
sociocultural.
É com a liberdade de cada escola elaborar seu projeto
pedagógico, acolhendo os sujeitos que dela participam, que a educação vai se
tornando ato de liberdade e instrumento da democracia. Essa é uma orientação
que tem possibilitado ao sistema educacional brasileiro ser mais inclusivo e
justo com os que mais necessitam da escola pública.
Contudo, há vozes discordantes na sociedade que defendem o
velho elitismo republicano da escola pública do início do século 20. Essas
vozes têm defendido o currículo nacional único sob o pretexto de que todas as
crianças devem ser alfabetizadas na idade certa e que para tanto é necessário
definir conteúdos padronizados para ser ensinados de norte a sul do país e que
devem ser exaustivamente avaliados.
Trata-se de um argumento que ignora a complexidade do
processo educacional. A transmissão de conteúdos, muitas vezes estranhos ao
contexto dos alunos, não é suficiente para garantir o bom desempenho educacional.
Outros fatores sociais interferem na aprendizagem e a escola não é, nem pode
ser, impermeável a eles.
A padronização curricular foi, durante séculos, responsável
pela expulsão de importantes segmentos sociais da escola. O critério de justiça
que orienta os sistemas escolares, apesar de repousar no ideal de igualdade de
oportunidades, promove injustiça ao tratar o diferente como igual, pode
torná-lo também desigual. Não se pode negar as diferenças sociais, econômicas e
culturais entre os indivíduos.
A retomada da defesa do currículo único na atualidade no
Brasil se deve a setores que concebem a educação somente como fator de
produção, a serviço de um modelo de desenvolvimento que ignora dimensões
indispensáveis à felicidade humana.
Quantos são os distúrbios em sociedades que levaram a risca
tal concepção? A experiência parece não bastar e a pesquisa acadêmica pouco é
solicitada a contribuir nas políticas públicas a serviço do bem comum. É
necessário debater a concepção de educação que interesse à sociedade brasileira
no seu conjunto, capaz de mobilizar forças sociais e as potencialidades deste
país.
______________________________________
DALILA ANDRADE OLIVEIRA, 47, é presidente da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e professora da UFMG
Nenhum comentário:
Postar um comentário