URBANO E CÁUSTICO
Autorretrato do quadrinista e escritor
por Lourenço Mutarelli
O
artista gráfico Lourenço Mutarelli é conhecido pelos personagens
sombrios, movidos a decepções, fracassos e insegurança, vivendo em um
mundo sem ética nem moral. Além de 12 álbuns de quadrinhos, como O Rei
do Ponto (Devir, 2000), A Caixa de Areia ou Eu Era Dois em Meu Quintal
(Devir, 2005) e Quando meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente
(Quadrinhos na Cia, 2011), é autor da coletânea de peças O Teatro de
Sombras (Devir, 2007) e dos romances O Cheiro do Ralo (Devir, 2002), O
Natimorto (DBA, 2004), A Arte de Produzir Efeito Sem Causa (Companhia
das Letras, 2008), entre outros. Mutarelli atuou nas adaptações de seus
romances para o cinema O Cheiro do Ralo e O Natimorto, ambos dirigidos
por Heitor Dhalia.
Em encontro realizado pelo Conselho
Editorial da Revista E, o convidado desta edição falou sobre seu
processo criativo nos quadrinhos e na literatura. “Eu escrevo como o
Marçal [escritor e roteirista Marçal Aquino] vê a escrita, parto de uma
pequena centelha, de uma faísca que eu jogo e vejo se incendeia. O meu
maior prazer em escrever é esse, pegar uma coisa e ir investigando,
escolhendo quando aquilo vai se ramificar”, afirma. A seguir, trechos.
Inspiração
Eu
tive uma infância muito sombria, as minhas primeiras impressões do
mundo foram extremamente sombrias e até hoje é no que eu me inspiro. Meu
trabalho me ajudou muito a suavizá-las. Escrevi O Cheiro do Ralo em
cinco dias, minha mulher falou que eu escrevi em 30 e tantos anos, que
eu tinha na época. E é isso, é uma mistura de milhões de coisas.
Trabalho
com tinta e desenho, minha roupa é toda cheia de tinta, então, quando
eu ia comprar alguma coisa em um comércio, era tratado como mendigo. Eu
sempre me dava mal em negociações. O Cheiro do Ralo é isso, é a mistura
do cheiro do banheiro de uma farmácia em que eu trabalhei quando era
adolescente e de um prédio em que morei, que também tinha esse problema.
Eu quis criar um personagem que era a minha antítese. Era ele quem
humilhava e era um personagem que sabia negociar.
Música, literatura e desenho
Eu
gosto muito do minimalismo, a música é a minha religião. Eu só desenho
com música concreta e, quando escrevo, não consigo ouvir esse tipo de
música. Antes de começar a trabalhar, eu escolho um CD, como se fosse
uma oração, porque isso muda a minha frequência, me desacelera e aí eu
começo a trabalhar. O próprio Philip Glass [compositor americano] não
gosta do termo minimalismo, ele usa música com estruturas repetidas.
O
meu último livro, Nada me Faltará [Companhia das Letras, 2010], é
exatamente isso, é uma história contada por algumas pessoas e com o
mínimo, são só diálogos, em nenhum momento eu cito nada. É um livro que
eu construí e depois fui tirando para ver até quanto eu poderia tirar e
ainda deixar a história em pé, como em um castelo de cartas. A
literatura foi me fascinando por isso. Primeiro, tentar escrever mais da
forma como a gente conversa, de uma forma que flua.
Eu
escrevo para gente preguiçosa de certa forma, pois são livros curtos,
porque não temos muito tempo. O que mais me fascina é encontrar uma
cadência, esse movimento interno que faz o leitor ir embora. O desenho, a
observação, isso contribuiu muito para a minha literatura. Depois de
escrever estes seis ou sete livros, quando fiz este último quadrinho, vi
como a literatura influenciou meu desenho. Tem páginas completamente
silenciosas, onde só tem imagem, é difícil encontrar o silêncio na
literatura. Essas coisas se complementam, sempre com essa regência
musical.
Marcatti e o começo da carreira
Foi
demais conviver com o Marcatti [cartunista brasileiro]. Eu tinha muito
medo de procurá-lo, porque eu lia os quadrinhos dele que são
profundamente doentios, escatológicos, pervertidos. Convivemos muito.
Esse meu último livro que saiu é uma edição muito bonita, papel bonito,
capa dura e alguém diz ‘você deve estar muito orgulhoso de ver o livro’.
Nada se compara ao meu primeiro fanzine, que eu montei
na garagem, eu, ele, um filho dele de dois anos, outro de quatro,
grampeando, aquele cheiro da tinta, o barulho da máquina, nunca mais eu
vou ter uma emoção tão profunda assim. Editamos uma revista [Tralha] que
era maravilhosa, era eu, ele e o Glauco Mattoso.
Bloqueio
O
bloqueio criativo foi assustador. Eu brincava que sofria do contrário,
eu tinha muitas ideias e não dava tempo para aproveitar todas elas. O
bloqueio foi quando fiz parte dos Amores Expressos, um projeto da RT
Features com a ?Companhia das Letras. Eles mandaram 16 autores para 16
partes do mundo, passávamos um mês na cidade e, na volta, escrevíamos
uma história de amor que deveria se passar naquela cidade. Não era minha
primeira encomenda, nem nada.
Eu tive que escrever uma
sinopse e é isso que me matou – eu demorei para entender que era isso –
essa sinopse tinha que ter começo, meio, fim e os personagens. A sinopse
era o livro para mim. Eu escrevo como o Marçal [escritor e roteirista
Marçal Aquino] vê a escrita, parto de uma pequena centelha, de uma
faísca que eu jogo e vejo se incendeia. O meu maior prazer em escrever é
esse, pegar uma coisa e ir investigando, escolhendo quando aquilo vai
se ramificar. Pegar uma coisa que já está formatada e desenvolver não é
criativo. E o livro não poderia ter nenhum personagem brasileiro. Isso
me aleijou, eu não sei o que não é ser brasileiro. Eu travei por causa
disso.
Processo criativo dos quadrinhos
Eu
faço alguns estudos para chegar aos personagens, porque quadrinhos é
uma coisa extremamente complexa e muito menosprezada, as pessoas não
entendem que para criar uma história tenho que entender um pouco de
arquitetura ou ter referências para construir esta cidade em que vai se
passar a história, tenho que entender minimamente de cenografia para
pensar os espaços, além de pensar nos personagens. Comecei a fazer
caricaturas físicas e morais de amigos, tem muitos personagens meus que
são amigos, pego alguma coisa deles e me aproprio.
Você
tem que pensar como eles se vestem. Quando você tem imagem, você
constrói subtextos, muita informação está sendo passada sem ser dita. Se
um personagem usa relógio ou não, você já muda profundamente este
personagem, são pequenas pistas. Meu traço é pesado, trabalho com bico
de pena, aquela coisa medieval mesmo, que você molha na tinta e a partir
da pressão da sua mão você alarga ou afina o traço.
Quero
chegar a uma coisa próxima do que eram os livros medievais, as
miniaturas, quero fazer um livro ilustrado, tipo uma bíblia antiga, todo
manuscrito e venho tentando chegar a isso. Quero fazer uma tiragem
independente, mínima, para que nunca mais seja reimpresso. Cada livro
meu tem que ser uma experiência.
Novos quadrinistas
A
autoedição é o futuro, é para onde a gente caminha. Nos anos 80, o
fanzine tinha a forma do que é hoje o Facebook, mais ou menos. O blog é
um caminho, tem muito autor que é descoberto pela internet. Quando eu
comecei havia várias revistas em banca – a tiragem da Chiclete com
Banana era de 100 mil exemplares por mês. Hoje não tem, precisa ter
espaço, pois há muita gente boa.
“Tive
uma infância muito sombria, as minhas primeiras impressões do mundo
foram extremamente sombrias e até hoje é no que eu me inspiro. Meu
trabalho me ajudou muito a suavizá-las”
Entrevista extraída Revista e nº 180
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